Como a privacidade se tornou uma mercadoria para os ricos e poderosos
Traduzido do original: https://www.nytimes.com/2017/05/09/magazine/how-privacy-became-a-commodity-for-the-rich-and-powerful.html?_r=1
Recentemente eu entreguei as
senhas da minha conta de e-mail para um serviço que prometeu transformar minha
caixa de entrada lotada de spams em um exemplo reluzente de eficiência em
apenas alguns cliques. O método do Unroll.me de cancelar a inscrição de
boletins informativos e mensagens indesejadas instantaneamente recebeu a "confiança
de milhões de usuários felizes", disse o site, sendo uma dessas pessoas o
ator do "Scandal" Joshua Malina, que tuítou em 2014: "Sua caixa
de entrada vai cantar!” E além de tudo, era grátis. Quando uma política de
privacidade apareceu, eu mandei o juridiquês pastar e tasquei um
"continuar".
No mês passado, o verdadeiro
custo do Unroll.me foi revelado: o serviço é de propriedade da empresa de
pesquisa de mercado Slice Intelligence e, segundo um relatório do The Times,
enquanto o Unroll.me limpa as caixas de entrada dos usuários, também está vasculhando
seu lixo. Quando Slice encontrou recibos digitais de Lyft em contas de alguns
usuários, ela vendeu os dados anônimos para o rival da Lyft, Uber.
De repente, alguns dos
usuários confiáveis do Unroll.me não estavam mais felizes. Um usuário entrou
com uma ação coletiva. Em uma postagem no blog, o diretor-executivo da Unroll.me,
Jojo Hedaya, escreveu que era "doloroso ver que alguns de nossos usuários
ficaram chateados ao saber como monetizamos nosso serviço gratuito". Ele
ressaltou "a importância de sua privacidade" e prometeu "melhorar".
Mas uma das fundadoras da Unroll.me, Perri Chase, que não está mais com a
empresa, abordou o tema diferentemente em seu próprio post sobre a
controvérsia. "Você realmente se importa (com a sua privacidade – NOTA DO
TRADUTOR)?", Ela escreveu. "O que há de surpreendente nisso (em ter
sua privacidade invadida – NOTA DO TRADUTOR)?"
Este teatro do “policial
bondoso, policial malvado” vindo do Vale do Silício já é conhecido, e vivemos
nossa vida transitando entre estas duas mentalidades. Chase está certa: já compreendemos
que privacidade é a moeda corrente de nossas vidas on-line, onde pagamos comodidades
triviais com informações pessoais. Mas ignoramos tranquilamente o significado
disso. Não sabemos quais dados estão sendo comprados e vendidos, porque, bem,
isso é privado. As provas que saltam aos nossos olhos parecem suficientemente inofensivas:
nós procuramos no Google por um par de sapatos novos, e por um momento, pares
de tênis nos seguem através da rede, provocando-nos em cada barra lateral. Mas
nossa informação também pode ser usada para assuntos de grande importância
pública, de maneiras que mal somos capazes de imaginar.
Quando eu me inscrevi para
Unroll.me, eu não poderia prever que meus e-mails poderiam ser documentos
estratégicos para uma empresa com sedenta de poder em sua busca pelo domínio
absoluto. E o tal custo da privacidade muitas vezes só se torna claro somente
depois que ele já foi pago. Às vezes, um cidadão é apanhado em uma onda viral e
descobre que muita informação sobre ele ou ela existe on-line, à espera apenas de
alguém para esmiuçar sua vida - como o cara de suéter vermelho que, depois de
fazer uma pergunta em um debate presidencial, teve revelados seus comentáriospornográficos no Reddit.
Mas nossos dossiês digitais
estendem-se muito além das partes individuais da informação que nós sabemos
estão online em algum lugar do mundo; eles agora incluem coisas sobre nós que
só podem ser concluídas através do estudo de nossos padrões de comportamento. O
psicólogo e cientista de dados Michael Kosinski descobriu que atividades
aparentemente mundanas - como as marcas e celebridades que as pessoas "curtem"
no Facebook - podem ser impulsionadas para prever com segurança, dentre outras
coisas, inteligência, características políticas e de personalidade. Após a
nossa mais recente eleição presidencial, a empresa Cambridge Analytica sevangloriava de que suas técnicas eram "fundamentais na identificação de
apoiadores, na persuasão de eleitores indecisos e na incitação ao comparecimento
às urnas" em favor de Donald Trump. Todas essas pequenas ações que cremos
ser nossos afazeres "privados" são de fato unidades de dados que
podem ser agregados e utilizados para manipular nosso mundo.
Anos atrás, em 2009, o
professor de direito Paul Ohm advertiu que o crescente domínio da Big Data poderia
criar um "banco de dados da perdição" que um dia ligaria todas as
pessoas a informações comprometedoras sobre suas vidas. "Na ausência de
intervenção", ele escreveu mais tarde, "em breve as empresas saberão
coisas sobre nós que nem sequer sabemos sobre nós mesmos". Ou como o
cientista social e colunista do Times Zeynep Tufekci disse em uma recentepalestra: "As pessoas não podem pensar desse jeito: eu não divulguei, mas
pode ser concluído sobre mim”. Quando um pervertido olha entre as persianas, sabemos
o que foi revelado. Mas quando uma empresa de dados invade nossas caixas de
entrada, é possível nunca se descobrir o que foi descoberto.
Privacidade nem sempre foi
vista como um patrimônio. Os gregos antigos, por exemplo, distinguem entre o domínio
público ("koinon") e o domínio privado ("idion"). Contrastando
com os cidadãos públicos envolvidos na vida política, os cidadãos humildes
particulares eram conhecidos como "idiotai", uma palavra que mais tarde
evoluiu para "idiotas". Algo semelhante é verdadeiro para a palavra
inglesa "privacidade". Como Hannah Arendt escreveu em "The
Condição Humana", a palavra privacidade já foi uma vez intimamente
associada com "um estado de ser privado de algo, e até mesmo da mais alta
e mais humana das capacidades do homem”. No século XVII, a palavra
"privado" surgiu como uma substituição politicamente correta para o
"comum", que assumiu um tom condescendente.
E ainda em algum lugar ao
longo do caminho, a privacidade foi reformulada como uma necessidade para
cultivar a vida da mente. No "1984" de George Orwell, os proles são preservados
uma vida de vigilância constante, enquanto os membros de mais alto escalão da
sociedade estão expostos ao olhar atento do Big Brother. O protagonista do
romance, Winston, começa a suspeitar que a verdadeira liberdade reside nessas
favelas sem vigilância: "Se há esperança", ele escreve em seu diário
secreto, "ela reside nos proles". No influente livro de 1967,
"Privacidade e Liberdade”, Alan Westin descreveu a privacidade como tendo
quatro funções: autonomia pessoal, liberação emocional, auto-avaliação e
comunicação íntima. Esta compreensão moderna da privacidade como um bem íntimo
cresceu junto com a tecnologia que ameaçava violá-la. No final do século 18, a
Quarta Emenda da Constituição dos Estados Unidos protegia os americanos de
buscas físicas tanto em seus corpos quanto em suas residências. Centenas de
anos mais tarde, os avanços tecnológicos tinham mentes pensando sobre um tipo
de privacidade mental também: Em um artigo de 1890 chamado "O Direito àPrivacidade", Samuel Warren e Louis Brandeis citaram "invenções e
métodos de negócios recentes" - incluindo fotografia instantânea e fofocas
de tablóides - que eles alegavam terem "invadido o recinto sagrado da vida
privada e doméstica". Eles defendiam o que eles chamavam o direito de
"ser deixado sozinho", mas também o que eles chamavam de
"direito à personalidade".
Agora que nossa privacidade
vale algo, cada parte dela está sendo monetizada. Podemos trocá-la por serviços
baratos ou desembolsar dinheiro para protegê-la. É cada vez mais visto não como
um direito, mas como um bem de luxo. Quando o Congresso votou recentemente para
permitir que os provedores de serviços de internet vendessem dados de usuários
sem o consentimento explícito dos usuários, surgiu uma conversa de produtos
premium que as pessoas poderiam pagar para proteger seus hábitos de navegação
da venda. E se eles não pudessem pagar? Como um congressista disse a um constituinte
preocupado, "Ninguém é obrigado a usar a internet." Praticamente,
porém, todo mundo é. Empresas de tecnologia têm reivindicado esta praça
pública: de repente, usamos o Facebook para apoiar candidatos, organizar
protestos e colocar questões em debates. Estamos essencialmente pagando um
imposto sobre dados para poder participar da democracia.
O smartphone é um dispositivo
íntimo; Nós olhamos fixos em sua luz brilhante e acariciamos seu vidro liso
para obter informações e nos conectarmos com outros. Parece projetado para nos
ajudar a alcançar as definições de Westin de privacidade, para permitir a
liberação emocional e momentos de reflexão passiva. Nós o carregamos para a
cama, o jantar, o banheiro. Suas pop-ups de políticas de privacidade são irritantes
lombadas de uma outrora instantânea invocação de desejos. Parece uma
experiência privada, quando de fato é tudo, menos isso. Quantas vezes você
protegeu o conteúdo de sua tela de um estranho no metrô, ou o parceiro ao lado
na cama, apenas para oferecer seus segredos para a empresa de dados rastreando
tudo o que você faz?
A economia de vigilância
trabalha dentro desse desequilíbrio de informação: empresas de extração de
dados sabem tudo sobre nós, mas sabemos muito pouco sobre o que eles sabem. E
assim como a "privacidade" se transformou em um chavão inquieto, os
poderosos a incorporaram para manter o controle sobre os outros e evadir a
responsabilidade. À medida que barganhamos a quantidade de privacidade que uma
pessoa comum deseja, também vimos empresas e figuras do governo demonstrando
uma crescente indignação com sua própria necessidade de serem deixados em paz.
As empresas exigem contratos de confidencialidade e exigem julgamento
extrajudicial para esconder melhor suas práticas de negócios. Em 2013, o
Facebook revogou a capacidade dos usuários de permanecerem não-pesquisáveis
no site; enquanto isso, seu chefe-executivo, Mark Zuckerberg, estava
comprando quatro casas em torno de sua casa em Palo Alto para preservar sua
própria privacidade. Sean Spicer, secretário de imprensa da Casa Branca,
defendeu as reuniões secretas do presidente Trump em seus clubes de golfe
pessoais, dizendo que ele tem "direito a um pouco de privacidade", e
a administração cortou o acesso público aos registros de visitantes da Casa
Branca, citando riscos de segurança e "preocupações com a
privacidade". Quando o New York Times informou que o presidente se
aconselha com o apresentador da Fox News Sean Hannity, Hannity indignado tuitou que suas conversas eram "PRIVADAS".
Chegamos a um lugar onde figuras
e instituições públicas podem ser zelosas sobre sua privacidade de maneiras que
outros indivíduos não podem. Entrar na Casa Branca agora é considerado mais
privado do que aquele comichão estranho que você pesquisou no Google. É uma
inversão cínica da velha associação entre a vida privada e a classe baixa: hoje
em dia, somente os poderosos podem exigir privacidade.
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Amanda Hess é uma colega de David Carr para The Times. Ela escreveu pela última vez para a revista sobre por que nenhum de nós está seguro de ser "possuído".
Traduzido por Kenzo Miura
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